
Monte Castelo - Legião Urbana

Muitos fãs de Legião Urbana amam esta música. Não para menos, afinal o Renato Russo também foi um poeta da alma.
Os poetas da alma têm alguma forma de parentesco. No caso de Monte Castelo, o Renato usou as palavras de dois parentes antigos: Paulo de Tarso e Luís de Camões.
Paulo, o Apóstolo, no caso escrevia um poema em forma de carta; está na Bíblia, na Carta aos Coríntios:
O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá. (1 Coríntios 13:8)

Muitos séculos depois, Camões, seu parente na poesia, também deixou versos imortais sobre o amor. Aqui vai um trecho do seu famoso soneto:
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
E foi assim que pensei em começar essa palestra, pois eu gosto de me considerar um parente distante desses todos que vieram antes de mim, e que assim como eu, dedicaram suas vidas ao amor.
Os seus poemas falam exatamente sobre onde vive este amor: na alma!
Mas o que é a alma?
O que é o amor?
O que é a poesia?
Bem, essas são perguntas difíceis. Não sei se eu vou conseguir responder todas elas nessa palestra.
Mas posso começar por uma mais simples: Quem sou eu?
Meu nome é Rafael Arrais, sou poeta e autor de um blog chamado Textos para Reflexão

John Galsworhty, poeta e novelista inglês, um dia disse que as palavras "são como pobres cascas de sentimento".
Cascas de sentimento! Desde que ouvi isso pela primeira vez, penso que cheguei na melhor definição da poesia que consegui encontrar.
A poesia é falha por definição. Ela se vale da palavra, uma casca, para tentar nos falar do sentimento: o fruto, a essência da vida, o amor.
Mesmo assim, os poetas são aqueles que mais chegam perto de conseguir transmitir tal sentimento somente por palavras. É isso precisamente o que faz a poesia: ela nos faz sentir, ao menos em parte, o que sentiu o poeta.

Vejam, por exemplo, o que sentia essa poeta:
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada.
Cecília Meireles foi uma grande poetisa da língua portuguesa...

Outro grande poeta do português disse uma vez:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Ele falou de fingimento, que é a casca, a palavra escrita, a poesia.
Ele falou de dor, que é o fruto, o sentimento, a essência.
O seu nome era Fernando Pessoa...
Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888, e também morreu em Lisboa, em 1935. Foi um mestre da língua portuguesa, mas como foi educado na África do Sul, onde se fala o inglês, podemos dizer que também foi um mestre da língua inglesa. Ou seja, foi um mestre da linguagem!
Além de poeta, também foi escritor, tradutor, publicitário, crítico literário, comentarista político, filósofo, astrólogo e ocultista.
Em vida publicou somente um livro de poemas, Mensagem, além de textos em revistas literárias. Mas deixou uma obra monumental por publicar, que até hoje é estudada por especialistas. Nos baús com seus cadernos escritos, volta e meia ainda encontram originais inéditos.
Como muitos devem saber, Pessoa não foi apenas um, foi vários. Pessoa assumiu diversas personalidades literárias, que ele chamava de heterônimos.
Os heterônimos mais conhecidos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Todos eles parte do mesmo poeta...

Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou porém menos real que os outros, menos coeso, menos pessoa, eminentemente influenciável por eles todos.
(Carta ao casal Monteiro)
Além de compreender a poesia como palavra, como casca, como fingimento, Pessoa também foi maravilhado pelo fato de seus heterônimos o terem dominado, e não o contrário.
Ou será que até mesmo isso era parte do seu fingimento?
Pessoa, enfim, foi poeta, e os poetas são misteriosos!

Alberto Caeiro foi o seu heterônimo pagão, amante da natureza, que desprezava toda metafísica, e que viveu mais perto do fruto do que da casca: Há metafísica suficiente em não pensar em nada
Ele se apresenta como um simples guardador de rebanhos, alguém que somente observa a natureza, sem criar teorias acerca do porquê das coisas serem como são:
O Mundo não se fez para pensarmos nele (pensar é estar doente dos olhos), mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Enquanto Pessoa era místico, Caeiro de certa forma era o anti-místico. Porém, apesar de se recusar a teorizar a espiritualidade, Caeiro a vivia de fato, com seu olhar sempre atento a eterna novidade do mundo. Caeiro sentia antes de pensar sobre o que se sente:
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
Como pagão, Caeiro via Deus na Natureza, e o chamava de luar e de sol, de flores e árvores e montes:
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
(...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
(...)
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Ricardo Reis foi outro heterônimo pagão. Ao contrário de Caeiro, era mais acadêmico, mais voltado para a poesia clássica, os antigos mitos gregos, as filosofias de Epicuro e dos estoicos.
Reis falava muito de um destino muitas vezes inevitável, como a morte. Seus versos eram uma tentativa poética de aceitar da melhor forma o que o destino nos guarda:
Chegada a hora, eu próprio serei todo menos que essas palavras; e papel, ou papiro escrito e morto será mais eu que eu mesmo.
A obra imortal excede o autor da obra; e é menos dono dela quem a fez do que o tempo em que perdura.
(...) Assim os deuses regem esta nossa mortal e imortal vida; assim o Fado rege que assim rejam. Mas se assim é, é assim.

O termo Fado vem do latim fatum, que quer dizer Destino. Para Reis haviam vários deuses, os mesmos da mitologia grega, que regiam os homens. No entanto, mesmo os deuses eram regidos pelo Fado, ou seja, pelo Destino.
Mas o Fado também é um estilo musical em Portugal, onde se canta sobretudo a tristeza e a melancolia, até um ponto onde elas podem ser até mesmo belas.
Vejam a seguir um exemplo do Fado atual, pela voz do cantor português António Zambujo...
Fortuna - António Zambujo
O tempo tudo consome, não tenho nada em meu nome... Sob o espírito dessa música, fica fácil apreciar a poesia de Ricardo Reis:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena nos cansar.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem grandes desassossegos.

Álvaro de Campos foi o heterônimo mais produtivo da obra de Pessoa. Ao que parece, ele o usou não apenas como heterônimo, mas muitas vezes como alter ego de si mesmo. Campos teve várias fases de estilos distintos, mas aqui vou trazer a sua fase final, próxima do fim da vida do poeta, onde ele está mais perto de uma espécie de "misticismo do século 20":
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é, dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, para uma rua inacessível a todos os pensamentos, real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres...
Mesmo com toda a sua angústia ante o mistério das coisas, Campos encontra na própria imaginação o seu grande triunfo:
Minha imaginação é um Arco de Triunfo.
Por baixo passa roda a Vida.
(...) O Arco de Triunfo da minha Imaginação
Assenta de um lado sobre Deus e do outro
Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho (segundo se julga),
Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos os momentos,
E as rápidas intenções que morrem antes do gesto.
(...) Mas às grandes horas da minha sensação,
Quando em vez de retilínea, ela é circular
E gira vertiginosamente sobre si-própria,
[Então] o Arco desaparece, se funde com a gente que passa...
E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,
E toda a gente que passa,
E toda a gente que passará
E toda a gente que já passou.
Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais
A figura esculpida a sair do alto do arco
Que fita para baixo
O universo que passa.
Mas eu próprio sou o Universo,
Eu próprio sou sujeito e objeto,
Eu próprio sou Arco e Rua...
(...) Realizo Deus numa arquitetura triunfal
De arco de Triunfo posto sobre o universo,
De arco de triunfo construído
Sobre todas as sensações de todos que sentem
E sobre todas as sensações de todas as sensações...

Se já é difícil compreender exatamente a poesia de um poeta, imagina a poesia de um poeta que foi vários!
Mas é perfeitamente compreensível não compreender a poesia. A poesia não foi feita para o cérebro, a poesia não serve a nossa razão.
A poesia deve ser sentida. Devemos deixar de lado as palavras, as cascas de sentimento, e nos preocuparmos somente em não nos preocupar com absolutamente nada... Nada além da sensação, dos frutos que os poemas trazem embrulhados nas palavras.
Agora vamos continuar nossa viagem. De Portugal para o Líbano...

Gibran Khalil Gibran, ou apenas Gibran, foi o poeta que descobriu de onde vieram as crianças:
Seus filhos não são seus filhos. Eles são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Eles vêm através de vocês, mas não de vocês, e embora eles vivam ao seu lado, eles não lhes pertencem.
Vocês podem lhes dar seu amor, mas não podem formar seus pensamentos, pois eles possuem seus próprios pensamentos. Vocês podem abrigar seus corpos, mas jamais suas almas, pois suas almas residem na Mansão do Amanhã, que vocês não podem visitar nem mesmo em sonhos.
Quantos conflitos familiares seriam evitados pela leitura desse tantinho de poesia!
Esse trecho veio de O Profeta, a sua obra mais conhecida e traduzida.
Gibran nasceu no Líbano, em 1883, mas a sua família emigrou para os Estados Unidos quando ele ainda era adolescente. Isso explica porque ele escreveu suas obras em árabe e depois as tradiziu ele mesmo para o inglês.
Em sua época, Gibran já tinha se tornado um escritor consagrado em plena Nova York, onde morou desde 1910. Ele retornou a Mansão do Amanhã em 1931, e desde então suas obras são cada vez mais lidas. No Líbano, Gibran é quase um santo...
Em O Profeta, temos um diálogo entre o velho sábio estrangeiro Almustafa e os habitantes da pequena cidade de Orphalese. Enquanto Almustafa aguarda pelo barco que o levará de volta para a ilha onde nasceu, os moradores lhes fazem perguntas, e ele responde.
É assim que o próprio Gibran fala sobre a amizade, o trabalho, as leis e os crimes, a morte e muitas outras coisas, pela boca do seu personagem.

Mas a primeira coisa que eles lhes pedem é, "nos fale do amor":
Quando o amor lhes acenar, sigam-no, embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados. E quando suas asas lhe envolverem, aceitem-nas, embora a espada oculta em suas plumas possa lhes ferir. E quando ele lhes falar, acreditem no que diz, embora sua voz possa despedaçar os seus sonhos como o vento do norte devasta ao jardim.
Pois assim como o amor os coroa, ele também os crucifica. E da mesma forma que auxilia em seu crescimento, trabalha também para a sua poda. E assim como ascende a sua altura e acaricia os seus ramos mais tenros que se agitam ao sol, também desce até suas raízes e as sacode em seu apego à terra.
(...) Todas essas coisas o amor irá operar em seu interior para que conheçam aos segredos de seus próprios corações, e através deste conhecimento se tornem um fragmento do coração da Vida.
Entretanto, acaso em seu medo vocês buscarem apenas a paz e o prazer do amor, então será melhor que cubram a sua nudez e abandonem ao chicote do amor, para que deem risadas num mundo sem estações, mas nem todos os seus risos; e chorem, mas nem todas as suas lágrimas.
O amor nada oferece além de si mesmo e nada recebe além de si mesmo. O amor não possui, e tampouco pode ser possuído; pois o amor se basta em si mesmo.
Quando você ama não deveria dizer, “Deus está em meu coração”, mas sim, “Eu estou no coração de Deus”. E não pensem que podem direcionar o curso do amor, pois o amor, se lhes acharem dignos, determinará ele próprio o seu curso.
O amor não tem outro desejo senão o de cumprir a si mesmo.

O amor não tem outro desejo senão o de cumprir a si mesmo.
A poesia é mesmo misteriosa. A frase acima não precisa ser compreendida pela mente, mas somente sentida pela alma. Por isso os poetas da alma não dizem nada, e falam sobre tudo...
Sobre as colinas, quando vocês se sentam sob à sombra fresca dos álamos brancos, compartilhando a paz e a serenidade dos campos e prados distantes – então, permitam que o seu coração diga em silêncio, “Deus repousa na razão”.
E quando vier a tempestade, e a grande ventania sacudir a floresta, e o trovão e o relâmpago proclamarem a majestade celeste – então, permitam que o seu coração diga em reverência, “Deus se move na paixão”.

Os poetas da alma também não falam de verdades absolutas, mas deixam que cada um encontre a sua própria verdade:
Não digam, “Encontrei a verdade”, mas sim, “Encontrei uma verdade”.
Não digam, “Encontrei o caminho da alma”, mas sim, “Encontrei a alma andando em meu caminho”.
Pois a alma anda por todos os caminhos.
A alma não anda sobre uma linha reta nem cresce como a cana.
A alma manifesta a si mesma, e floresce como uma lótus de inúmeras pétalas.
Um dos anciões da cidade perguntou a Almustafa sobre o Bem e o Mal, esta foi a resposta:
Eu posso falar do bem que reside em vocês, mas não do mal. Pois o que é o mal senão o próprio bem torturado por sua fome e sua sede? Na realidade, quando o bem sente fome, ele busca alimento até mesmo nas cavernas mais escuras, e quando tem sede, bebe até mesmo nas águas paradas.
(...) Vocês são bons quando caminham rumo aos seus objetivos, firmes e com passos intrépidos. Porém, não são maus quando seguem mancando. Mesmo os que mancam não andam para trás. Mas vocês que são fortes e ligeiros, cuidem para que não andem mancando ao lado dos coxos, sentindo pena.
(...) Em sua ânsia pelo seu Eu Gigante reside a sua bondade: e esta ânsia está presente em todos vocês. Mas em alguns de vocês, esta ânsia é uma corrente que desagua com toda a sua vontade no mar, carregando consigo os segredos das colinas e as canções da floresta. Enquanto que em outros, é um córrego preguiçoso que se perde em meandros e serpenteia em muitas curvas, se arrastando para a costa.

Através das palavras de Almustafa, Gibran nos ensinou muita coisa. Mas aprendemos antes de nós mesmos. É isso que os poetas da alma fazem, nos revelam nossa própria alma:
Homem algum poderá lhes revelar nada além do que já se encontra meio adormecido na aurora do que vocês já conhecem.
O mestre que caminha à sombra do templo, junto aos seus alunos, não doa da sua sabedoria, mas antes da sua fé e da sua compaixão.
Se ele é realmente sábio, não lhes convidará a adentrar na mansão da sua sabedoria, mas antes deverá lhes guiar até o limiar de suas próprias mentes.
Já recitei muito da sua poesia, a seguir deixarei que outros recitem por mim...
Na Floresta - Khalil Gibran (voz Leticia Sabatella; música Marcus Viana)

As palavras dos poetas da alma parecem mesmo guardar algum gosto do fruto do amor.
O amor nem sempre é doce, as vezes o seu caminho pode ser amargo. Como já disse Gibran: Todas essas coisas o amor irá operar em seu interior para que conheçam aos segredos de seus próprios corações, e através deste conhecimento se tornem um fragmento do coração da Vida.
Muitos séculos antes de Gibran, outro grande poeta nascia na Pérsia. Ele foi um teólogo ortodoxo do Islã durante boa parte da vida, mas após ter encontrado um sábio andarilho, se transformou, e mergulhou no coração da Vida...

Jalal ud-Din Rumi, ou apenas Rumi, foi o poeta que aprendeu a mergulhar na Alma:
Se o conhecimento místico pudesse ser obtido simplesmente pelo que dizem outros homens, não seria necessário entregar-se a tanto trabalho e esforço, e ninguém se sacrificaria tanto nessa busca. Alguém vai à beira do mar e só vê água salgada, tubarões e peixes. Ele diz: "Onde está essa pérola de que falam? Talvez não haja pérola alguma". Como seria possível obter a pérola simplesmente olhando o mar? Mesmo que tivesse de esvaziar o mar cem mil vezes com uma taça, a pérola jamais seria encontrada.
É preciso um mergulhador para encontrá-la.
Toda a poesia da alma pode ser lida como um Manual de Natação, mas quem tem de mergulhar é você!
Rumi nasceu em 1207 na então província persa de Balkh (atual Tajiquistão). Quando ainda era adolescente, fugiu da invasão do Império Mongol junto com a família, e terminou por residir em Konya (atual Turquia) pelo resto da vida. Morreu em 1273, e o seu túmulo em Konya é até hoje um local de peregrinação.
Rumi era filho de um teólogo e mestre do sufismo (vertente mística do Islã), e sucedeu o pai. Em boa parte da vida, foi um teólogo ortodoxo e tradicional, casado e pai de vários filhos. Um dia, porém, um andarilho sufi chamado Shams de Tabriz ("o sol de Tabriz") cruzou sua cidade e eles rapidamente se tornaram não somente grandes amigos, mas chegaram a uma espécie de união mística de almas, que não tinha nenhuma conotação sexual, mas que fez o amor de ambos ascender a esferas mais elevadas...
A conexão de Rumi e Shams causou enorme ciúme e comoção entre seus antigos discípulos. Isso chegou ao ponto em que Shams foi provavelmente assassinado por alguns dos discípulos de Rumi (ou pelo menos sumiu e nunca mais apareceu).
Então, pelo resto da vida, Rumi passou a cantar versos em homenagem a Shams e outros amigos. Ele havia encontrado o fragmento do coração da Vida presente em todos os seres...

Rumi fundou a escola dos dervixes rodopiantes. Ele de fato recitava seus poemas enquanto dançava. Sabe-se lá de onde chegavam tais palavras, mas o que nos importa é que seus discípulos as anotaram; anotaram milhares e milhares delas:
Se você não me achar em você, nunca me achará. Pois, tenho estado contigo, desde o início de mim.
Lá onde nasce o verdadeiro amor morre o “eu”, esse tenebroso déspota. Você o deixa expirar no negro da noite, e livre respira à luz da manhã.
Luz matinal, cheia de pequenas partículas a dançar, e o Grandioso a girar. Nossas almas dançam contigo, sem pés, elas dançam. Você pode vê-las quando eu sussurro em seus ouvidos?

A maior característica da poesia de Rumi é a fusão mística entre o Amante e o Amado, entre o Sujeito e o Objeto do seu amor, enfim, a união entre todas as almas do mundo:
Além das ideias de certo e errado,
há um campo. Eu lhe encontrarei lá.
Quando a alma se deita naquela grama,
o mundo está preenchido demais para que falemos dele.
Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um”
não fazem mais nenhum sentido.
No corpo do mundo, dizem, há uma alma:
é isto o que você é.
Porém, nós temos caminhos entre nós
que nunca serão mencionados por ninguém.
Outra grande característica é o ecumenismo. Mesmo em meio ao islamismo do século 13, Rumi abria a mesquita em seu coração para todos os povos e culturas:
Vem, vem, seja você quem for, não importa se você é um infiel, um idólatra, ou um adorador do fogo; vem, nossa irmandade não é um lugar de desespero; vem, mesmo tendo violado seu juramento cem vezes, vem assim mesmo.
Vem, lhe direi em segredo aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar e os grãos de areia do deserto giram desnorteados?
Cada átomo, feliz ou miserável, gira apaixonado em torno do sol.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta. Já que todos somos um, falemos deste outro modo.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma. Fechemos então a boca e conversemos através da alma. Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se lhe interessa, posso mostrar...

O poeta afastou toda dualidade, e o que restou foi a religião do Amor:
O que eu posso fazer, ó muçulmanos? Eu não me conheço mais.
Não sou cristão ou judeu. Nem um islâmico, nem um mago. Não venho nem do Oriente nem do Ocidente. Nem do continente, nem do mar. Não venho do trono, nem do solo. Nem da existência, nem do ser. Nem deste mundo nem do próximo: nem céu nem inferno.
Meu lugar é sem lugar, minhas pegadas não deixam rastros. Nem corpo nem alma: tudo que há é a vida do meu Amado.
Eu afastei toda dualidade: eu vi dois mundos como um. Eu desejo Um, eu conheço Um, eu vejo Um, eu clamo: “Um”.
Embriagado desse Amor, Rumi chegou a tentar descrever a Alma do Mundo... até o ponto em que ele mesmo se confundia com ela, o seu ego havia se dissipado inteiramente:
Eu sou a poeira no raio solar. Eu sou o sol circular. Para os pedaços de pó eu digo, “Fiquem”. Para o sol, “Continue a viajar”.
Eu sou a neblina da manhã, e o suspirar da tardinha. Eu sou o vento no topo do bosque, e a arrebentação ao pé do penhasco. Mastro, leme, timoneiro, e barco, sou também o recife de corais onde eles naufragaram.
Eu sou uma árvore com um papagaio treinado em seus galhos.
Silêncio, pensamento, e voz.
O ar musical saindo de uma flauta,
a faísca de uma pedra, uma oscilação
num metal. Tanto a vela,
quando a mariposa alucinada ao redor.
A rosa, e o rouxinol perdido em sua fragrância.

Eu sou todas as ordens do ser, a galáxia circundante,
a inteligência evolucionária, a ascensão,
e a queda. O que é,
e o que não é.
Você quem sabe Jalal ud-Din,
Você, o uno em tudo,
me diga quem Eu sou.
Diga eu
Sou Você.
Não é preciso acrescentar mais nada... Deixarei que falem por mim mais uma vez...
Sama - Rumi (voz Leticia Sabatella; música Marcus Viana)

Quando os poetas chegam assim tão perto da Alma, é impossível não confudi-los com santos... Mas, e o que são os santos, afinal?
Sejam o que forem, a foto ao lado trás dois deles. Talvez vocês conheçam o da direita: Mahatma Gandhi, grande líder político e pacifista do século XX.
A sua esquerda se encontra o homem que lhe deu este apelido, "Mahatma", que significa "Grande alma". Ele também foi poeta, educador, compositor, músico, dramaturgo e o primeiro não-ocidental a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1913.
O seu nome era Rabindranath Tagore, e na Índia ele é até hoje chamado de Gurudev ("mentor divino"). Ele é o quarto e último poeta da alma de quem falaremos nessa palestra...

Tagore nasceu em 1861 em Calcutá, na Índia, onde também veio a nos deixar, em 1941.
Ele revolucionou a poesia, a literatura e a música do seu país, abandonando todas as fórmulas clássicas de então. Seus romances, histórias, canções, danças dramáticas e ensaios falavam sobre temas políticos e pessoais. Com seu livro de poemas, Gitanjali (Oferenda Lírica), ganhou o Nobel de Lietratura. Além disso, é provavelmente o único ser humano compositor do hino nacional de dois países diferentes: tando da Índia quanto de Bangladesh.
É claro que haveria muito mais a se falar sobre a vida da Tagore, mas aqui vamos usar o tempo que nos resta para trazer a vocês o mais importante: a sua poesia!
Tagore foi o poeta que viu o futuro da humanidade caso ela siga o caminho certo, o caminho iluminado pela sabedoria:
Onde a mente encontra-se sem medo e a cabeça é mantida erguida;
onde o conhecimento é livre;
onde o mundo não foi quebrado em fragmentos
por estreitos muros domésticos;
onde as palavras vêm da verdade profunda;
onde laboriosas lutas esticam seus braços em direção à perfeição;
onde o riacho límpido da razão não perdeu seu rumo
afluindo ao triste deserto dos hábitos moribundos;
onde a mente é direcionada adiante por você
a pensamentos e ações sempre em constante afloramento;
nesse céu de liberdade, Pai, deixe meu país acordar!

Para Tagore, as crianças eram mais ou menos como santos brincalhões:
Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram. O céu infinito permanece estático sobre as suas cabeças e a água, inquieta, cutuca a areia. Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram, com muitas danças e algazarras.
Elas constroem suas casas com areia e brincam com as conchas vazias. Com as folhas secas elas tecem seus barquinhos e os colocam, sorridentes, para flutuar na vastidão do mar. As crianças brincam na praia dos mundos.
Elas não sabem nadar, e tampouco arremessar as redes...

Pescadores de pérolas mergulham atrás de pérolas, mercadores navegam em seus barcos, enquanto as crianças catam pequeninas pedras, e depois as espalham novamente. Elas não buscam por tesouros ocultos, e tampouco sabem arremessar as redes.
As ondas explodem na beira, as gargalhadas, e toda a praia cintila, com um sorriso em preto e branco. As ondas assassinas cantam baladas sem sentido para as crianças, assim como a mãe que embala o seu bebê no berço. O mar brinca com as crianças, e toda a praia cintila, com um sorriso em preto e branco.
Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram. A tempestade ronda pelo céu sem trilhas, os navios naufragam pelo mar sem rotas, a morte está à solta, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim ocorre o grande encontro de todas as crianças.

E, se formos parar para pensar, toda criança é um santo que não sabe que é um santo.
E todo santo é uma criança que sabe que é um santo, mas já não precisa contar isso para ninguém...
Hoje os santos somente brincam de amar, nesse mundo e nos demais.
(adaptado do pensamento de Satyaprem)
A poesia; a alma; o amor... Não podem mesmo ser explicados, só sentidos. Essa palestra procurou trazer uma expriência poética, mais do que alguma explicação... Para encerrar, um poema de Tagore que resume tudo isso, Amor sem fim:
Eu pareço ter amado você em inúmeras formas, inúmeras vezes,
em vida após vida, idade após idade, sempre.
Meu coração enfeitiçado fez e refez o colar de canções
que você aceita como presente, usa à volta do pescoço em suas muitas formas,
em vida após vida, idade após idade, sempre.
Quando eu escuto crônicas antigas de amor, é sofrimento amadurecido,
é o conto ancestral de se estar junto ou separado.
Assim que eu encaro mais e mais fundo o passado,
no final você emerge
envolto na luz de uma estrela-cadente
cortando a escuridão do tempo:
Você se torna uma imagem do que é lembrado para sempre.

Eu e você temos flutuado aqui no córrego que flui da fonte,
no coração do tempo do amor de um pelo outro.
Nós temos brincado ao lado de milhões de amantes,
partilhado a mesma doce timidez do encontro,
as mesmas dolorosas lágrimas de despedida –
amor antigo, mas em formas que se renovam e renovam, sempre.
Hoje ele está guardado à seus pés, ele achou o seu fim em você;
o amor de todos os dias dos homens, tanto passados quanto eternos:
Alegria universal, tristeza universal, vida universal;
as memórias de todos os amores
mesclando-se com esse nosso amor único –
e as canções de cada poeta, tanto passados quanto eternos.
FIM

A obra de todos os quatro poetas citados na palestra está em Domínio Público:
Os trechos de Fernando Pessoa foram retirados do original, em português.
Os trechos de Khalil Gibran e Rabindranath Tagore foram traduzidos do original em inglês por Rafael Arrais.
Os trechos de Jalal ud-Din Rumi foram traduzidos de versões em inglês por Rafael Arrais.
Você pode adquirir nossos livros e ebooks desses e outros grandes autores nas Edições Textos para Reflexão: